“...Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.”
Clarice Lispector. In: "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Descobri-a em uma gramática, uma das minhas primeiras. Havia um texto para ser trabalhado, era da Clarice. Fiquei em choque com a capacidade descritiva desta autora. Eu era ainda bem jovem, uns doze anos. Como ela conseguia passear, tão facilmente, por sentimentos que eu sentia mas, não verbalizava nem para mim mesma. Olhei em volta, após terminar minha leitura, em sala de aula, para ver se alguém estava tão maravilhado quanto eu. Todos já haviam terminado suas leituras e brincavam, uns com os outros, seguindo a rotina de todos os dias. Não haviam sido tocados. Mas eu, nunca mais fui a mesma. A cada novo livro devorava todos os textos em busca de Clarice. Em busca de mais inspiração, ou, acho, em busca de sentir-me compreendida. Havia alguém que sabia sentir a vida em seus detalhes. Sabia que todas as coisas conversavam. Sabia que eu não era triste, eu era apenas eu. Havia alguém com quem podia conversar. Suas palavras, no papel, eram grito aos meus ouvidos. Havia Clarice.
Lílian Baroni